sábado, 1 de setembro de 2007

A APROPRIAÇÃO DA LINGUAGEM NA CONSTRUÇÃO DA ESCOLA CIDADÃ


Passados mais de cem anos do surgimento, crescimento e afirmação da Lingüística moderna como ciência autônoma, muitos continuam a dar as costas à investigação científica da linguagem, preferindo consagrar-se à divulgação e sustentação das "superstições, mitos e estereótipos" que circulam em nossa sociedade há anos.
Não obstante às tentativas dos escritores românticos de criar um português brasileiro, a iniciativa só foi bem sucedida com o Modernismo a partir de 1922. Esse movimento artístico foi o início do processo de independência cultural e lingüística do Brasil em relação a Portugal. Com o experimentalismo da primeira geração modernista, o lusitanismo (como padrão lingüístico) estava fora de cogitação, era uma tentativa de inserir na literatura a linguagem coloquial do brasileiro. Portanto, essa questão de ter um português brasileiro não é nova e não está encerrada, sendo revalorizada quando se abordam os estudos da língua e se considera o ponto de vista da sociolingüística.
No final da década de 60, a tese de que a Lingüística substituiria, rápida e eficazmente, a Gramática e a Filologia, assim como, a de que a Lingüística era um meio de se fundamentar cientificamente o estudo das obras literárias instituindo um fator de renovação do ensino da língua materna, eram defendidas com entusiasmo. A Lingüística parecia, então, impor-se às demais ciências humanas, como ciência capaz de revelar as matrizes de todo comportamento significativo.
Em 1990, o lingüista e educador britânico, Michael Stubbs, já escrevia que "toda a área da língua na educação está impregnada de superstições, mitos e estereótipos, muitos dos quais têm persistido por séculos e, às vezes, com distorções deliberadas dos fatos lingüísticos e pedagógicos por parte da mídia".
Nos dias atuais, os direitos lingüísticos que têm sido atribuídos à norma de prestígio, denominada "culta", são negados aos idiomas originais e às formas populares da linguagem. Essa é a evidência de uma política lingüística e educacional em grande medida discriminadora, racista. Naturalizou-se na escola, por exemplo, que para aprender a escrever, as crianças têm de mudar de dialeto, o que equivale a escrever desconsiderando-se a própria cultura e história. Quebra-se, desse modo, a ponte entre oralidade social de origem e escrita; situação que contribui para o enfraquecimento dos esteios identitários.
Assim, a noção de Lingüística, tornou-se vaga por abranger uma série muito grande de disciplinas e orientações metodológicas; e sua aplicação no ensino não foi suficientemente ampla, nem eficaz, para surtir os espetaculares resultados que se esperavam.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), em seu volume dedicado ao ensino da língua portuguesa, propõem que levemos aos alunos a imagem de uma língua única, mais próxima da modalidade escrita da linguagem, subjacente às prescrições normativas da gramática escolar, dos manuais e mesmo dos programas de difusão da mídia sobre “o que se deve e o que não se deve falar e escrever”.
O referido documento é enfático ao afirmar que há muitos preconceitos decorrentes do valor social relativo que é atribuído aos diferentes modos de falar: é muito comum se considerar as variedades lingüísticas de menor prestígio como inferiores ou erradas; portanto, o problema do preconceito disseminado na sociedade em relação às falas dialetais deve ser enfrentado, na escola, como parte de um objetivo educacional mais amplo: “o da educação para o respeito à diferença”. Sendo referência para a reorientação curricular, os PCNs constituem o eixo norteador da política educacional, por isso são abertos e flexíveis, assegurando o respeito à diversidade cultural do país e às adaptações que integram as diferentes dimensões da prática educacional.
Essas crenças, segundo o lingüista e educador Marcos Bagno (2001), produziram uma prática de mutilação cultural que, além de desvalorizar a forma de falar do aluno, tratando sua comunidade como se fosse formada por incapazes, denota desconhecimento de que a escrita de uma língua não corresponde inteiramente a nenhum de seus dialetos - por mais prestígio que um deles tenha em um dado momento histórico.
O realismo lingüístico é indispensável ao professor para ensinar a seus alunos que a língua e a gramática são como elas são e não como pretendem impô-las; que não há língua que não evolua; que os usos e os fatos devem prevalecer sobre preconceitos normativos; e, sobretudo ensinar que a língua é um saber interior e pessoal dos falantes, da qual o ensino deve partir e sempre se basear.
Em sua trajetória, Bagno (2001) combate abertamente a manutenção das concepções arcaicas e preconceituosas de língua, asseverando que devemos ensinar a norma-padrão na escola; pois, só se pode ensinar algo que o aprendiz ainda não conhece. Cabe à escola, portanto, ensinar a norma-padrão, que não é língua materna, nem dialeto, nem variedade. E ensinar o padrão se justificaria, pelo fato de que ele tem valores que não podem ser negados em sua estreita associação com a escrita, já que “é o repositório dos conhecimentos acumulados ao longo da história”. Esses conhecimentos, assim armazenados, constituiriam a cultura mais valorizada e prestigiada, de que todos os falantes devem se apoderar para se integrar de pleno direito na produção, na condução e na transformação da sociedade em que estão inseridos.
Possenti (1996) e Rocha (2002) reforçam esse julgamento e defendem que o papel da escola é ensinar a língua padrão, em outras palavras, o de criar condições para que ela seja ensinada considerando que esta pode ser uma ferramenta valiosa para compreender a linguagem humana numa perspectiva não exclusivamente discursiva, textual ou pragmática.
Magda Soares (1986) nos ensina que “um ensino de língua materna comprometido com a luta contra as desigualdades sociais e econômicas reconhece, no quadro dessas relações entre a escola e a sociedade, o direito que têm as camadas populares de apropriar-se do dialeto de prestígio, e fixa-se como objetivo levar os alunos pertencentes a essas camadas a dominá-lo, não para que se adaptem às exigências de uma sociedade que divide e discrimina, mas para que adquiram um instrumento fundamental para a participação política e a luta contra as desigualdades sociais.” Visto que não é necessário, ao aluno/cidadão, conhecer a nomenclatura nem as definições propostas pelas gramáticas tradicionais. Esse aluno precisa sim, é que a escola seja um lugar que cuide, aborde e trabalhe a realidade cotidiana na qual estão inseridos; precisa sim, é de uma escola que os ensine a participar da política e a lutar contra as desigualdades sociais; precisa sim, é de uma escola “cidadã”. Portanto, ser capaz de identificar, por meio de uma terminologia, o "sujeito" e o "predicado" de uma frase, não faz nenhum sentido para eles; o que importa é o que a frase quer dizer, os efeitos de sentido que ela pode provocar, o que ela tem a ver com a realidade deles...
O Prof. Ataliba T. de Castilho (1998) - considerado o nome mais importante da pesquisa científica sobre o português brasileiro contemporâneo - escreve que: “os recortes lingüísticos devem ilustrar as variedades sócio-culturais da Língua Portuguesa, sem discriminações contra a fala vernácula do aluno, isto é, sua fala familiar. A escola é o primeiro contato do cidadão com o Estado, e seria bom que ela não se assemelhasse a um ‘bicho estranho’, a um lugar onde se cuida de coisas fora da realidade cotidiana. Com o tempo o aluno entenderá que para cada situação se requer uma variedade lingüística, e será assim iniciado no padrão culto, caso já não o tenha trazido de casa”. Desse modo, prossegue o autor, “a gramática deixará de ser vista pelos alunos como a disciplina do certo e do errado, reassumindo sua verdadeira dimensão, que é a de esquadrinhar através dos materiais lingüísticos o funcionamento da mente humana”.
Afinal, o que aconteceu, ao longo dos séculos, segundo Castilho, foi que a gramática, que não era uma disciplina autônoma, assumiu na escola uma vida própria, desgarrada de suas origens, e concentrada apenas na sentença, na palavra e no som, obscurecendo-se sua argumentação e empobrecendo-se seu alcance. Se existe, porém, uma grande resistência contra o redimensionamento do lugar do ensino da gramática na escola é porque sabemos que, ao longo do tempo, o conhecimento mecânico da doutrina gramatical se transformou num instrumento de discriminação e de exclusão social.
Pode-se acrescentar que há esforços no sentido de que o padrão seja complexo e difícil de aprender justamente para evitar que as classes populares, menos escolarizadas, venham a dominá-lo com facilidade, atenuando assim seus estigmas de inferioridade. "Saber português", na verdade, sempre significou "saber gramática", isto é, ser capaz de identificar - por meio de uma terminologia falha e incoerente - o "sujeito" e o "predicado" de uma frase, pouco importando o que essa frase queria dizer ou os efeitos de sentido que podia provocar.
Sabe-se que a Lingüística não deve ser aplicada ao ensino da língua materna na forma de uma teoria particular e que há idéias sobre as quais se deve haver um consenso entre os lingüistas de diferentes formações, com vistas a criar um conjunto de orientações potencialmente capazes de alterar os hábitos e conceitos em relação à língua materna. Assim sendo, teóricos e educadores empenhados num conhecimento maior e melhor da realidade lingüística do nosso país, não devem se basear exclusivamente na arcaica doutrina gramatical normativo-prescritiva, cuja inconsistência teórica e cujos problemas epistemológicos graves vêm sendo demonstrados e criticados pela Lingüística moderna desde o final do século XIX.
No ensino de língua portuguesa, não há Pedagogia, Psicologia, Metodologia e/ou Fonoaudiologia que substitua o conhecimento lingüístico que o professor deve ter. Sem uma base lingüística verdadeira, as pessoas envolvidas em questões de ensino de português acabam acatando velhas e erradas tradições de ensino ou se apoiando explícita ou implicitamente em concepções inadequadas da linguagem.
Seria interessante que a polêmica se tornasse mais conhecida e chegasse à escola, aos meios de comunicação e aos cidadãos cultos em geral, que, a rigor, desconhecem solenemente, em mais de um sentido, um dos lados da controvérsia quem sabe assim poder-se-ia combater o excessivo conservadorismo; defender que a chamada norma culta é mais imaginária que real; analisar afirmações conservadoras na mídia sobre "língua correta" e as avaliar com critérios das teorias variacionistas; reivindicar de forma coerente uma gramática para os brasileiros; mostrar que o português ao qual dizem que são devotados não é o que eles mesmos praticam e mostrar que as línguas mudam e assim, mudam-se os padrões.
Entendo que esta poderia ser uma ferramenta valiosa - junto a outras, é óbvio - para compreender a linguagem humana desde uma perspectiva não exclusivamente discursiva, textual ou pragmática; e que indagando os processos de identidade lingüísticas e educacionais, tendo presentes rostos, vozes, histórias de tantas vidas cujo destino está em risco - não só lingüístico - conceberíamos uma teoria nada mais do que como forma de compreender o mundo. Bem dizia Marx que além de compreendê-lo, o que importa de verdade é transformá-lo.
E se de fato comprovar-se que, com base na lingüística - sozinha -, não será possível transformar o mundo no qual vivemos, também compreender-se-á que, com base nesta ciência, podemos avalizar a dependência, o menosprezo para com as formas de falar, pensar e sentir das classes mais oprimidas; ou lutar para contribuir para a criação de condições científico-políticas que concorram para a libertação da consciência e da palavra dos povos e setores oprimidos da sociedade à qual pertencemos.


Referências:

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico: o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 2001.
____________ Português ou Brasileiro? Um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial, 2001.
____________, STUBBS, Michael & GAGNÉ, Gilles. Língua Materna: letramento, variação & ensino. São Paulo: Parábola, 2002.
BRASIL/ MEC. Parâmetros Curriculares Nacionais. 1996.
CASTILHO, Ataliba T. de. A língua falada e o ensino de português. São Paulo: Contexto; 6a. ed., 2004.
POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas: Mercado das Letras, 1997.
ROCHA, Luiz Carlos de Assis. Gramática: Nunca Mais - O Ensino da Língua Padrão sem o Estudo da Gramática. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2002.
SOARES, Magda. Linguagem e Escola; uma perspectiva social. São Paulo: Ática, 1986.

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