domingo, 9 de setembro de 2007

RESENHA COMPARATIVA

por Patrícia Ferreira Bianchini Borges

O presente trabalho trata-se de uma resenha comparativa realizada a partir do capítulo 1 - Oralidade e letramento do livro “Da fala para a escrita: atividades de retextualização”, escrito pelo pesquisador Luiz Antônio Marcuschi, e da obra “Preconceito lingüístico: o que é, como se faz”, do reconhecido lingüista Marcos Bagno. O objetivo deste trabalho é identificar o posicionamento dos referidos autores no que diz respeito aos mitos relativos ao preconceito lingüístico, assim como aos fenômenos que se dão no contínuo escrita – fala.A partir de um breve histórico das linhas teóricas que tratam o oral por oposição ao escrito e das concepções que pretendem denotar a superioridade de uma modalidade sobre a outra, sobretudo da escrita em relação à fala; Marcuschi, em seu texto, reconhece a importância das contribuições recentes no campo da linguagem e deixa claro seu compromisso sociointeracionista apresentando o campo entre o oral e o escrito como um contínuo complexo que, apesar de apresentar distinções marcantes, paradoxalmente, não se constitui na forma de dois sistemas ou dois pólos estanques. Através de uma reflexão detalhada sobre alguns aspectos do uso da língua, Bagno, em sua obra, conduz o leitor a questionamentos e análises acerca do preconceito lingüístico resultante de um embate histórico entre língua e gramática normativa. Assim, no primeiro capítulo, partindo do pressuposto de que há uma mitologia do preconceito lingüístico, o autor enumera oito mitos que refletem o comportamento da sociedade no que diz respeito ao uso da língua, às suas variantes e principalmente à atitude dos falantes com relação ao seu próprio idioma. O primeiro mito diz respeito à "surpreendente unidade que possui a língua portuguesa falada no Brasil". A caracterização desse mito, como sendo um dos mais maiores e mais sérios, decorre do fato de que, estando tal idéia arraigada à cultura e não reconhecendo como legítima a existência da variação lingüística, a educação seria amplamente prejudicada uma vez que não se reconhecendo a diversidade do português falado no Brasil, desconsiderar-se-iam também os problemas de comunicação entre falantes de diferentes variedades da língua. Segundo Bagno, no Brasil, embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, sua forma apresenta alto grau de diversidade e variabilidade. Marcuschi evidencia compartilhar de tal posicionamento ao afirmar que oralidade e escrita permitem a construção de textos coesos e coerentes, embora sejam permeadas por variações estilísticas, sociais, dialetais e assim por diante. O segundo mito traça considerações sobre o conceito de que o "Brasileiro não sabe português e que só em Portugal se fala bem português", levantando a questão da diferença existente entre língua falada e língua escrita. Num segundo momento, aborda as noções de certo e errado, levando-se em conta o que é natural no uso da língua materna. O autor assegura, inclusive, que a existência desse mito também prejudica o ensino de língua estrangeira. De acordo com Bagno, a sociedade brasileira carrega um sentimento de inferioridade e preconceito com relação a sua língua. Assim, há uma concepção errônea de que os brasileiros não sabem o português, e que a forma “correta” seria a falada em Portugal. Como Bagno, acreditamos que esses estereótipos precisam ser discutidos e esclarecidos, para que nossa nação tenha não somente a independência lingüística, como também a cultural. O preconceito inerente à própria cultura do povo torna-se evidente, quando é enumerado o terceiro mito: "Português é muito difícil". Neste caso, é abordada a questão da existência de uma gramática brasileira e de seu emprego na língua falada, contrapondo-se a uma gramática normativa de origem portuguesa. Segundo Bagno, a utilização da norma culta é privilégio de poucos, e com isso é mantido o “status quo” das classes privilegiadas.O autor justifica a existência do quarto mito, "As pessoas sem instrução falam tudo errado", através da manutenção de crenças decorrentes da triangulação entre escola/gramática/dicionário, e do desconhecimento quase que total da variação, na língua oral, decorrente da diversidade cultural e geográfica. Segundo Bagno, alguns fenômenos lingüísticos como a palatalização, por exemplo, alterariam os conceitos de fala normal, engraçada, feia e/ou errada e, por sua vez, colocariam em questão, não somente a língua, mas também o se usuário, defendendo que as classes sociais a que essas pessoas pertencem são marginalizadas e desprestigiadas, e por isso a língua que falam sofre o mesmo preconceito. Corroborando com Bagno, Marcuschi assevera ser mais um mito o fato de considerar-se que pessoas sem instrução falam tudo errado; pois, mesmo pessoas ditas “iletradas”, estão sob a influência de estratégias da escrita em seu desempenho lingüístico. A perspectiva variacionista apresentada por Marcuschi defende que a variação se daria tanto na fala como na escrita, o que evitaria o equívoco de identificar a língua escrita como padronizada, pois não existem sociedades letradas, mas sim grupos letrados que detêm o poder social, já que as sociedades não são fenômenos homogêneos e globais, apresentando diferenças internas, em outras palavras, não existem línguas uniformes, todas elas variam.O quinto mito trata do tema: "O certo é falar assim porque se escreve assim", refletindo sobre a supervalorização da língua escrita em detrimento da língua falada, tendo como uma das conseqüências mais sérias o ensino de uma língua falada "artificial". Nele Bagno admite que "é necessária uma ortografia única para toda a língua, de modo que todos possam ler e compreender o que está escrito". Entretanto, a língua escrita é apenas uma tentativa de representação da língua falada e, como tal, possui limitações. Assim sendo, a manifestação escrita da língua tem limitações diversas, obedecendo a diferentes funções e a especificidades muito próprias, o que torna o seu ensino um desafio. A manifestação desse mito concretiza uma situação histórica: a confusão existente entre língua e gramática normativa, isso denuncia, segundo Bagno, a presença de mecanismos ideológicos agindo através da imposição de normas gramaticais conservadoras no ensino da língua. No mito “O certo é falar assim porque se escreve assim”, Bagno fala sobre a tendência no ensino da língua de se querer obrigar o aluno a pronunciar as palavras do mesmo modo que elas são escritas e que algumas gramáticas e livros didáticos aconselham o professor a “corrigir” os usuários de variações como “muleque”, “bejo”, “bisôro”. Segundo Bagno, trata-se de uma supervalorização da escrita combinada ao desprezo da língua falada, preconceito este que data de antes de Cristo. Essa supervalorização também é citada por Marcuschi que lembrando Stubbs (1980) afiança que a fala tem uma grande precedência sobre a escrita, embora a escrita seja vista como mais prestigiosa que a fala para algumas culturas. Marcuschi acrescenta, ainda, que a supervalorização da escrita leva a uma posição de supremacia das culturas com escrita ou até mesmo dos grupos que dominam a escrita dentro de uma sociedade desigualmente desenvolvida, separando-se deste modo as culturas civilizadas das primitivas. Os autores também compartilham a visão de que a oralidade é um fator de identidade social, regional e grupal dos indivíduos, visto que é possível uma palavra como “colégio” ser pronunciado distintamente por um pernambucano e por um paulistano. De acordo com Bagno, essa diferença se trata de uma variação e mostra que nenhuma língua é falada do mesmo modo por todos os seus falantes. Ainda no sexto mito, Bagno lembra que a escrita é uma tentativa exaustiva de representação da fala e que nenhuma palavra escrita terá a mesma força se ela for pronunciada com todas as inflexões. Mais uma vez os autores partilham do mesmo pensamento, pois Marcuschi lembra que a escrita não pode ser tida como uma representação da fala além de a escrita não reproduzir muitos dos fenômenos da oralidade, tais como a prosódia, a gestualidade, entre outros; apesar de, segundo Marcuschi, a escrita apresentar elementos significativos próprios, tais como o tamanho e o tipo de letras, cores e formatos.O mito de número sete "É preciso saber gramática para falar e escrever bem", aborda uma das mais delicadas questões do ensino da língua: a existência das gramáticas, que teriam como finalidade primeira a descrição do funcionamento da língua, mas que fatalmente se tornaram, no decorrer dos tempos, instrumentos ideológicos de poder e controle social.Finalizando o primeiro capítulo de sua obra, Bagno desmitifica a idéia de que “O domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social” complementando o primeiro mito citado no livro, uma vez que ambos têm uma conotação social, pois estariam ligados aos poderes político e econômico. Segundo o autor, o fato de o indivíduo adquirir a norma culta da língua em nada contribui para que ele “suba na vida”, afinal de contas, que diferença isso faz na vida de uma criança que não tem uma casa decente para morar, nem as condições mínimas de sobrevivência a um ser humano?Por sua vez, no que tange a esse assunto, Marcuschi cita algumas questões, também bastante míticas, relativas à alfabetização (entendida aqui como uma prática dicotômica ao letramento). O autor diz que “a escrita, após se tornar um fenômeno de massa e desejável a todos os seres humanos, passou a receber um status bastante singular no contexto das atividades cognitivas de um modo geral”. Para muitos, o seu domínio se tornou um passaporte para a civilização e para o conhecimento. Mais do que ninguém, nós, professores de português, com nossos salários injustos, sabemos que, realmente, todo esse discurso não passa de um mito. Afinal, como bem disse Bagno, se o domínio da norma culta fosse “um instrumento de ascensão na sociedade, os professores ocupariam o topo da pirâmide social, econômica e política do país”.Com o título de "O círculo vicioso do preconceito lingüístico", Bagno alerta o leitor, no segundo capítulo, para a existência de determinados elementos (denominados "comandos paragramaticais"), que unidos funcionariam eficazmente na manutenção do círculo vicioso do preconceito. Alerta para o fato de que nomes de gramáticos conceituados no país estariam, de certa forma, fortalecendo a existência desse preconceito lingüístico, em contrapartida lingüistas e sociolingüistas através de trabalhos científicos com a língua, estariam desmitificando esse mesmo preconceito.Ao finalizar seu livro com um terceiro capítulo, cujo título é: "A desconstrução do preconceito lingüístico", Bagno reconhece a existência de uma crise no ensino da língua portuguesa, sugerindo alternativas de mudança de atitude, inclusive questionando a noção de "erro" e apresentando problemas considerados básicos por ele que manteriam a norma culta, como um "bem reservado a poucas pessoas no Brasil" devido a razões políticas, econômicas, sociais e culturais. Segundo o autor, deveríamos nos impor como falantes competentes de nossa língua materna, e, enquanto professores de língua, não poderíamos alimentar a manutenção de dogmas. Dessa forma, seríamos conduzidos a refletir sobre a língua e a produzir conhecimento gramatical. Através de atitudes como essas, a linguagem deixaria de ser o "poderoso instrumento de ocultação da verdade, manipulação do outro, de controle, de intimidação, de opressão, de emudecimento". Ao mesmo tempo em que Bagno taxionomiza a mitologia do preconceito lingüístico, descortina a possibilidade de combatê-la. As pessoas quando pensam que falam e escrevem "errado" sua língua estão naturalizando uma idéia preconcebida e, em conseqüência disso, aceitam passivamente sua estigmatização social, alimentando um processo que impede a reflexão e a conseqüente mudança do comportamento lingüístico.No trabalho de Bagno, além de o leitor encontrar um discurso marcadamente político, assumido pelo próprio autor no início do livro, percebe-se claramente uma profunda preocupação com os rumos do ensino da língua materna em iguais proporções às tecidas por Marcuschi em seu texto. Considerando os objetivos do autor ao produzir o livro, e a intenção de torná-lo um instrumento de combate ao preconceito lingüístico, não se pode deixar de recomendar sua divulgação junto aos meios acadêmicos, tanto em nível de terceiro grau como em nível de pós-graduação, em áreas cujo foco é o ensino/aprendizagem de língua materna. Aliando suas informações ao estudo de outros pesquisadores, como o fizemos neste trabalho poderemos de fato comprovar que, com base na lingüística - sozinha -, não será possível transformar o mundo em que vivemos, compreendendo que, com base nesta ciência, podemos avalizar a dependência, o menosprezo para com as formas de falar, pensar e sentir das classes mais oprimidas; ou lutar para a criação de condições científico-políticas que concorram para a libertação da consciência e da palavra dos povos e setores oprimidos da sociedade à qual pertencemos.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAGNO, Marcos. Preconceito lingüístico - o que é, como se faz. São Paulo: Edições Loyola, 1999.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2000.

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